Tudo tem limite…

Data: 31/05/2010

Tudo tem limite…


Flavia Pardini, da Página 22

No longo processo de elaborar o projeto de lei recém apresentado ao Senado americano sobre as mudanças climáticas, os senadores John Kerry (democrata, Massachussets) e Joe Lieberman (independente, Connecticut), viram-se em palpos de aranha. Não só há resistência de todos os lados a uma lei que limite as emissões de gases de efeito estufa, como passou a haver reticência quanto a como fazê-lo. Até há pouco tempo visto como unanimidade, o cap-and-trade (C&T) – sistema que impõe um teto e cria um mercado para as emissões – passou a ser palavrão. Tanto que os senadores restringiram seu alcance ao setor elétrico, e passaram a chamar o sistema de emissions reductions targets.

O C&T teve a imagem danificada pelos efeitos da crise financeira causada pelo estouro da bolha imobiliária nos EUA. De repente, os americanos parecem ter se dado conta de que seria mais um mercado desenhado por Wall Street, aberto às possibilidades de especulação como as que levaram ao inchaço e estouro da bolha de hipotecas. Só que nesse caso estariam em jogo os esforços do país para controlar suas emissões e contribuir para a ação internacional de mitigação das mudanças climáticas. (Para uma crítica detalhada, veja o vídeo ao lado, da série Story of Stuff, em inglês).

Mas haveria alternativas para dar conta de colocar preço nas emissões de carbono, incentivar fontes alternativas de energia e, ao mesmo tempo, garantir que a nascente economia de baixo carbono seja eqüitativa?

A opção mais conhecida é o bom e velho imposto, mas esse, sim, é um baita palavrão, e não só nos EUA: nomeie um lugar no mundo onde as pessoas gostam de pagar mais imposto e você ganha um doce. Alguns países europeus, notadamente Suécia e Noruega, taxam os combustíveis, mas nenhum foi capaz de instituir um esquema que compreenda toda a economia. Em 2008, a província canadense de British Columbia criou uma taxa sobre o carbono e, embora tenha reduzido o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas como forma de neutralizar seu impacto, o esquema ainda causa polêmica.

Recentemente, mais uma alternativa apareceu no radar: o cap-and-dividend, um sistema que impõe limite decrescente de emissões a todos os setores da economia, leiloa as permissões para emitir e, com a receita, devolve o dinheiro aos cidadãos, como um dividendo pago pelo uso da atmosfera. O cap-and-dividend tem apelo entre as organizações dedicadas a preservar recursos comuns e entre os que defendem que a mitigação das mudanças climáticas leve em conta a justiça social. Do outro lado do espectro, é visto como uma medida socializante que gera pouco investimento em novas tecnologias e fontes de energia.

Cap-and-trade, imposto, cap-and-dividend, qual o melhor instrumento para obter a redução de emissões e minimizar custos para a economia e os cidadãos? Cada um conta com uma claque de apoio e recebe críticas certeiras, e a única coisa que parece clara a esta altura é que o debate não terá fim tão cedo.

Para quem pensa que o tema é pertinente apenas aos países desenvolvidos, é bom lembrar que as nações em desenvolvimento fazem parte do mercado instituído pelo Protocolo de Kyoto, que funciona como um C&T. Os países desenvolvidos devem limitar suas emissões, mas podem compensar comprando créditos gerados pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) em nações em desenvolvimento. Com o fiasco das negociações internacionais em Copenhague em dezembro passado, também é difícil dizer o que substituirá Kyoto e o MDL após 2012, mas talvez seja uma boa aposta a de que, em breve, desenvolvidos e em desenvolvimento terão de agir, seja com mercado, taxação ou uma terceira via.

No Brasil, o Ministério da Fazenda estuda a implementação de um esquema de C&T para cumprir a meta de reduzir as emissões de 36,1% a 38,9% até 2020. A seguir, alguns prós e contra dos três instrumentos.

Cap-and-trade

A ideia de limitar as emissões de substâncias poluidoras e permitir que, para cumprir o limite, as empresas negociem permissões para poluir nasceu na segunda metade dos anos 60 quando o economista John Dales explorava maneiras de controlar a poluição nos lagos canadenses e o então estudante de pós-graduação americano Thomas Crocker buscava soluções para minimizar os impactos ambientais de fábricas de fertilizantes na Flórida.

A lógica é que, ao impor um limite, o governo indiretamente dá um valor às emissões. Se alguns conseguem reduzir as emissões além do limite, enquanto outros precisam de uma mãozinha, por que não deixá-los encontrar, por meio do mercado, a maneira mais barata de fazê-lo?

O esquema deu frutos nos anos 90 quando a Casa Branca, cumprindo promessa de campanha de George H.W. Bush, acatou proposta da ONG Environmental Defense Fund para um mercado de emissões de dióxido de enxofre e óxido de nitrogênio como forma de conter os efeitos da chuva ácida, que criava problemas em estados americanos e no vizinho Canadá. Aprovada pelo Congresso, foi uma das emendas ao Clean Air Act e criou o chamado mercado de chuva ácida. Esse mercado é comumente apontado como caso de sucesso do C&T, mas críticos dizem que a Alemanha reduziu o problema da chuva ácida mais eficientemente com ações de comando-e-controle.

A principal diferença entre o C&T e uma simples taxa sobre o conteúdo de carbono de combustíveis ou produtos é o fato de que o C&T limita a quantidade de emissões jogadas na atmosfera ao criar um determinado número de permissões para emitir – decrescente ao longo do tempo – e permitir que os atores privados decidam seu preço via mercado. No caso da taxa, o governo coloca um preço sobre o carbono e deixa que os agentes econômicos decidam quanto emitir. Ou seja, não há garantia que um dado volume de emissões será reduzido.

O componente de mercado do C&T em teoria beneficia aqueles setores ou empresas que consigam reduzir emissões ao menor custo. De outro lado, os críticos do C&T apontam que, ao limitar quantidade e permitir que o preço flutue, o C&T gera uma enorme incerteza para os agentes econômicos.

Um dos pontos chave de um esquema de C&T é como o governo dispõe das permissões criadas. No caso do mercado de carbono criado pela União Europeia, as permissões foram dadas de graça às empresas e, inicialmente, em volume maior do que o de emissões. Resultado: as empresas lucraram ao receber de graça um instrumento que tem valor no mercado e, com mais permissões do que emissões, o preço da tonelada de carbono desabou no primeiro ano de negociações.

A experiência europeia ajuda a reforçar a necessidade de que os novos mercados optem por leiloar as permissões, de forma a levantar recursos para compensar setores ou consumidores mais atingidos pelo valor dado ao carbono.

Além das permissões, é preciso atentar para as compensações. O mercado europeu, por exemplo, permite que as empresas comprem créditos gerados pelo MDL para ajudá-las a reduzir emissões da forma mais barata.

O problema é que muitos projetos de MDL são não-adicionais, ou seja, não geram redução de emissões além do que ocorreria se eles não existissem – caso dos projetos para destruição do gás HFC-23 na China. O barato, nesse caso, acaba saindo caro. Especialmente porque alguns esquemas de C&T propostos – como o australiano, agora engavetado pelo governo – permitem que as empresas usem créditos para cumprir grande parte de suas metas, tornando a empreitada cara também ambientalmente. Além disso, argumenta o economista William Nordhaus, o MDL é um “instrumento opaco”, o equivalente ambiental dos instrumentos baseados em hipotecas que levaram à mais recente crise financeira mundial.

Talvez o maior apelo do C&T até recentemente era o fato de que o esquema parecia factível politicamente: para deputados e senadores seria mais fácil convencer os eleitores a aceitar um sistema que entregaria resultados ambientais sem trazer prejuízos econômicos do que simplesmente criar um novo imposto.

Imposto sobre o carbono

Política à parte, as vantagens de instituir um imposto de acordo com o conteúdo de carbono dos combustíveis incluem a facilidade de operar dentro de um sistema mais do que conhecido de todos – o tributário – e o fato de que estabelecer um preço para o carbono aumenta o nível de certeza e transparência para os agentes econômicos. Não é preciso criar novas commodities – permissões para emitir e créditos de carbono – e uma escassez artificial de forma a dar valor a elas.

A dúvida, entretanto, reside no nível correto do imposto para que ele gere as reduções de emissões desejadas. Uma vez que o imposto determina o preço mas não a quantidade, é difícil saber a decisão dos agentes econômicos: emitirão menos e, assim, cumprirão o objetivo ambiental da medida?

E o maior problema com a taxação é garantir que ela não recaia desproporcionalmente sobre a camada menos favorecida da sociedade que, em relação a camadas mais abonadas, destina proporção maior de sua renda para consumo do que para investimento ou poupança. Os mais pobres em geral não têm a opção de mudar de carro ou viajar menos para evitar gastos maiores com combustíveis. Uma solução para o problema é usar a receita do novo imposto sobre o carbono para financiar uma redução no imposto de renda desses indivíduos, como faz a província canadense de British Columbia.

A taxa sobre o carbono parece ser a solução preferida por nove entre dez economistas, mas o problema é convencer os políticos de que eles podem ser eleitos, ou reeleitos, defendendo um aumento de impostos.

Cap-and-dividend

Reduzir emissões sem afetar a renda do cidadão é a promessa do cap-and-dividend, um esquema arquitetado pelo empresário e ambientalista americano Peter Barnes. Barnes se inspirou no Alaska Permanent Fund, um fundo criado pelo estado do Alasca em 1976 para abrigar receitas com royalties e concessões mineirais, inclusive do setor de petróleo.

O valor principal do fundo deve ser reinvestido perpetuamente, mas parte da receita obtida com os investimentos é paga em forma de dividendo aos cidadãos do estado. A ideia é transformar uma riqueza não renovável como o petróleo em fonte renovável de riqueza para as futuras gerações.

No caso do cap-and-dividend, a estratégia é criar um limite não para os emissores de gases de efeito estufa – o chamado downstream –, mas para os produtores e distribuidores de petróleo, carvão e outros combustíveis fósseis – o chamado upstream. O limite viria na forma de permissões proporcionais ao conteúdo de carbono do combustível em questão e seria decrescente ao longo do tempo. A vantagem aí seria evitar os esforços de verificação e monitoramento de milhares de emissores – de fábricas a carros.

Para compensar o aumento do custo repassado para o resto da cadeia de produção e consumo, o esquema prevê que a receita com a venda das permissões seja devolvida aos cidadãos na forma de um dividendo – igual para todos. O tamanho do dividendo não depende de quanto carbono um indivíduo usa: se ele usa mais, paga mais, mas recebe o mesmo em dividendo, o que deveria incentivar as pessoas a consumir menos.

Uma crítica ao esquema aponta a falta de incentivos e recursos destinados a desenvolver novas tecnologias para uma economia de baixo carbono, mas os defensores do cap-and-dividend dizem que o limite decrescente para os produtores e distribuidores de combustíveis fósseis deveria fomentar investimentos em novas tecnologias e criar empregos.

Por trás do cap-and-dividend está a lógica de que a atmosfera é um recurso comum que não deve ser privatizado. Assim como um imposto, o esquema seria de mais fácil execução e evitaria a criação de um mercado aberto a especuladores de toda sorte. A aposta dos arquitetos do cap-and-dividend é a de que ele seria mais palatável politicamente do que um imposto sobre o carbono. Duas senadoras americanas apresentaram um projeto de cap-and-dividend e alguns políticos declararam-se a favor da matéria. Mas ainda seria preciso vencer o lobby do setor financeiro.

(Página 22) - Mercado Ético





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